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Família perfeita ainda molda expectativas de pais e mães

Entre o café da manhã impecável e a rotina exaustiva, persistem papéis tradicionais de gênero.


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No jardim da casa, a mesa está montada com todos os elementos de um café da manhã impecável. Há frutas, suco de laranja, frios organizados em uma tábua e pão fresco. Ao redor, um casal sorridente e seus filhos exemplares compõem a cena, uma imagem clássica de comercial de margarina. Por trás dessa tela, porém, persistem figuras conhecidas como a “mãe perfeita” e o “pai herói”. Apesar de antigas, esses personagens ainda moldam grande parte do imaginário coletivo.


A psicóloga perinatal* Rosane Cípola explica que, ao longo da história, os papéis atribuídos a mães e pais foram moldados por ideais de gênero e valores culturais de cada época. Segundo ela:

“durante séculos, a mãe foi associada ao cuidado, à dedicação e à abnegação, enquanto ao pai se atribuía força, autoridade, proteção e o papel de provedor”.

Rosane acrescenta que:

“o que hoje se entende como instinto ou amor materno não é algo inato, mas sim o resultado de um longo processo sociocultural, que ainda influencia e impõe expectativas elevadas”. 

Essa idealização ganha novas formas nas redes sociais, onde a maternidade é frequentemente retratada como uma performance impecável. Vídeos que viralizam mostram mulheres preparando banquetes de café da manhã dignos de hotel, com uma criança no colo, enquanto organizam a casa com aparente facilidade. A cena vende a maternidade como uma vocação natural e sem falhas, onde o cansaço não existe e a dedicação é sempre plena.


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Luciana Morais, operadora de caixa, revela que sempre teve medo de ser mãe, sobretudo pela grande responsabilidade de gerar e cuidar de uma criança. De acordo com ela, a mulher deixa de ser vista como indivíduo para assumir quase exclusivamente o papel materno. “A responsabilidade cai toda sobre a mãe. Se a criança chora, é a mãe que tem que lidar, segurar e acalmá-la. É tudo a mãe”. Ela acrescenta que também já sentiu receio de ser responsabilizada integralmente pelos próprios filhos, “Já enfrentei a pressão de corresponder ao ideal de ‘mãe perfeita’, tanto na educação quanto em outras áreas da vida deles”.


E esse peso tem nome, chama-se carga mental, que é o acúmulo de responsabilidades, decisões e preocupações que ocupam a mente, exigindo atenção constante e podendo gerar desgaste emocional. Conforme a psicóloga, “na parentalidade, essa carga costuma recair mais sobre as mães como resultado da desigualdade histórica na divisão das responsabilidades domésticas e parentais. Essa distribuição desigual intensifica o desgaste físico e emocional das mães, impactando diretamente sua saúde mental e qualidade de vida”.


Enquanto isso, a figura do pai é construída sobre um alicerce diferente. Ele é enaltecido como "pai herói" por ações que, no contexto materno, seriam vistas como obrigações. Basta comparecer a uma reunião escolar ou preparar uma refeição para ser celebrado como um exemplo, reforçando a ideia de que o cuidado com os filhos é uma responsabilidade secundária, uma ajuda e não uma obrigação.


Décio Mário, pai e aposentado, exemplifica essa transição. Ele conta que, ao se tornar pai, teve que mudar hábitos e desconstruir expectativas que carregava por toda a vida, “Eu tive que reaprender muita coisa. No começo, achava que estava 'ajudando', mas entendi que isso é ser pai de verdade, participar do cotidiano, aprender a dar banho, a preparar a lancheira. Foi uma mudança de rotina e de mentalidade, algo que a minha geração não era cobrada a fazer”.


A rigidez desses papéis idealizados não afeta apenas a saúde mental de pais e mães, mas também o relacionamento do casal. Rosane Cípola alerta que a divisão desigual de tarefas e cuidados pode gerar “tensões significativas na conjugalidade”, impactando a comunicação e a intimidade. “A sensação de injustiça e de falta de reconhecimento do esforço de quem assume a maior parte do trabalho pode comprometer o vínculo, prejudicando a relação que deveria ser baseada em corresponsabilidade”, complementa.


Para viver uma parentalidade mais real e saudável, é preciso desconstruir esses mitos no cotidiano. A profissional sugere que as famílias comecem pelo “alinhamento de expectativas” antes mesmo da chegada do bebê e estimulem a participação ativa do pai nos cuidados diários, para que a responsabilidade se torne algo natural. A chave é reconhecer que, tanto mães quanto pais, são seres humanos com limites, com direito a erros e sentimentos ambivalentes. O ideal a ser buscado, portanto, não é a perfeição dos comerciais de margarina, mas a honestidade, a parceria e a presença.


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Psicóloga perinatal: é a profissional que cuida da saúde mental da mulher e da família durante o período que envolve a gravidez, o parto e o pós-parto, também conhecido como puerpério.


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